Por Flavia Andrade
No recém-lançado Malês, o cinema brasileiro reencontra suas raízes mais profundas e dolorosas para recontar, com força e sensibilidade, um dos episódios mais silenciados da nossa história: a Revolta dos Malês, levante protagonizado por africanos muçulmanos escravizados na Bahia, em 1835. Com direção cuidadosa e fotografia pulsante, o filme mergulha o espectador no calor da resistência negra em Salvador, trazendo à tona não apenas a luta pela liberdade, mas também a complexidade cultural, religiosa e política daquele momento.
O brilho do filme se acende de forma especial nas atuações de Camila Pitanga e Antonio Pitanga, que não apenas interpretam, mas encarnam seus personagens com uma entrega comovente. Camila surge em cena com uma presença arrebatadora, dando vida a uma mulher que transita entre a fé, a dor e a insubmissão. Sua atuação é visceral, carregada de emoção e firmeza, revelando nuances de uma personagem que representa tantas outras vozes femininas silenciadas pela história oficial.
Antonio Pitanga, por sua vez, é pura ancestralidade. Sua interpretação é uma aula de contenção e dignidade. Em cada olhar, em cada silêncio, ele transmite a sabedoria e a resistência de um povo que, mesmo diante das maiores brutalidades, jamais perdeu a conexão com suas raízes. Ver pai e filha em cena — com tamanha intensidade e respeito à história que estão contando — é testemunhar um encontro poderoso entre gerações de artistas comprometidos com a memória negra no Brasil.
O filme também se destaca por retratar com fidelidade e respeito a riqueza da cultura islâmica africana trazida pelos malês — muçulmanos escravizados, em sua maioria de origem iorubá, que eram alfabetizados em árabe e profundamente organizados em suas práticas religiosas e sociais. A Revolta dos Malês, que ocorreu na madrugada de 24 para 25 de janeiro de 1835, foi um dos maiores levantes urbanos de escravizados na América Latina. Ainda que tenha sido sufocada com violência, a revolta permanece como símbolo de resistência e organização, frequentemente apagado dos livros didáticos.
Malês não é apenas um filme sobre o passado — é um espelho do presente e um chamado ao futuro. Em tempos em que a memória histórica é constantemente ameaçada, obras como esta se tornam ainda mais urgentes.

 
								





