*Por Mariana Piva
A chamada “pejotização” tem ocupado espaço relevante no debate jurídico e social contemporâneo. No exercício da advocacia trabalhista, observo com frequência que a constituição de pessoas jurídicas por trabalhadores, em determinados contextos, serve como instrumento para mascarar uma relação de emprego que, materialmente, preenche todos os requisitos previstos no artigo 3º da CLT: pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade. Não se trata, portanto, de mera discussão terminológica, mas de uma questão que envolve segurança jurídica, equilíbrio contratual e a própria dignidade da pessoa que trabalha.
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que determinou a suspensão nacional de todos os processos envolvendo a validade de contratos de PJ com indícios de vínculo empregatício, representa um marco processual. Essa medida ocorre em meio a um cenário de explosão da litigiosidade! A pejotização já ocupa o 16º lugar entre os temas mais judicializados na Justiça do Trabalho. Para se ter uma ideia mais clara do impacto, trago os dados de 2024 Tribunal Superior do Trabalho (TST), que ajuizou 285 mil processos requerendo o reconhecimento de vínculo de emprego, um aumento de 57% em relação ao ano anterior.
Trata-se, portanto, de um debate que transcende a esfera processual. Estamos diante de uma discussão sobre os limites da flexibilização trabalhista, da preservação da segurança jurídica e da proteção da dignidade nas relações laborais. Um estudo da FGV-EESP revela que 53% dos microempreendedores individuais (MEIs) atuam, na prática, como trabalhadores subordinados, ou seja, não exercem atividade empresarial por escolha, mas sim por imposição contratual que lhes retira garantias previstas na legislação celetista.
A pejotização pode se apresentar, em situações específicas, como um modelo legítimo e eficiente. Há casos envolvendo executivos de alta renda ou profissionais liberais qualificados, com efetiva autonomia negocial e interesse em manter tal regime, inclusive pelas vantagens econômicas que oferece. Por outro lado, a utilização indiscriminada desse formato, sem critérios objetivos e adequados à natureza da função, tende a gerar insegurança jurídica e a fragilizar relações contratuais, impactando não apenas trabalhadores, mas também empresas, que se expõem a questionamentos e passivos relevantes.
Dessa forma, a garantia da segurança jurídica demanda a manutenção de um critério objetivo bem estabelecido para a adoção da ferramenta, restringindo-a aos chamados “hipersuficientes”. A alternativa seria a criação de uma figura jurídica intermediária, à semelhança do “worker” no direito britânico, que garante direitos básicos e recolhimentos previdenciários, preservando algum grau de flexibilidade. No ponto contrário, sem o estabelecimento de parâmetros claros, o risco é institucionalizar um mecanismo de supressão de direitos, com repercussões inclusive retroativas.
Sob a ótica empresarial, a insegurança jurídica decorrente desse cenário é evidente. Em operações de fusões e aquisições, é cada vez mais comum que investidores estrangeiros exijam a migração de contratos para o regime celetista, diante do temor de passivos trabalhistas. É recorrente o argumento de que a pejotização fomenta o empreendedorismo, uma premissa que, a meu ver, não se sustenta. O verdadeiro obstáculo à atividade empresarial no Brasil reside na complexidade tributária e na burocracia excessiva. Empresas inovadoras e escaláveis, ao se consolidarem, tendem a regularizar vínculos, não a perpetuar modelos frágeis.
Caso o STF opte por modular a decisão, fixando critérios precisos e proporcionais, haverá um avanço importante na segurança jurídica, trazendo previsibilidade tanto para empresas quanto para profissionais. Por outro lado, a validação ampla e irrestrita da prática de pejotização pode gerar distorções, estimulando o uso indiscriminado dessa forma contratual sem a devida correspondência em obrigações e responsabilidades, o que tende a aumentar litígios e incertezas.
Não se trata de restringir a liberdade contratual, mas de estabelecer parâmetros claros para que seja exercida de forma equilibrada. Contratos estruturados de maneira transparente e condizente com a realidade da prestação de serviços são essenciais para mitigar riscos e fortalecer relações de trabalho, seja no regime celetista, seja em modelos alternativos. O papel do STF será justamente o de definir balizas que conciliem flexibilidade e proteção, evitando que a pejotização seja utilizada de forma abusiva e preservando, ao mesmo tempo, o ambiente de negócios e a competitividade empresarial.
Por Mariana Piva Zadra David, sócia da área trabalhista no Marcos Martins Advogados
