Da Redação
Mapago quer dizer “onça” na língua Guató. E como a onça, o filme caminha com firmeza entre mundos, atravessando o território alagado da ancestralidade, o asfalto quente da periferia e o corpo pulsante das mulheres indígenas que resistem — mesmo quando foram arrancadas de suas raízes. As gravações do curta-metragem começaram neste domingo (3) em Campo Grande, com direção de Marcus Teles e roteiro de Marcus Teles e Gleycielli Nonato Guató, também protagonista ao lado da artista MC Serena.
Com 16 minutos de duração e uma linguagem híbrida que mescla realismo poético e documentário encenado, Mapago nasce da necessidade de visibilizar um povo frequentemente silenciado: os Guató, originários do Pantanal, mas hoje também espalhados pelas periferias urbanas do Mato Grosso do Sul. Um povo que, como a própria língua ancestral, foi dado como extinto pelas estruturas coloniais — mas que ressurge, vibrante, nas telas, na arte e na palavra.
“Interpretar essa mulher que sente falta de sua terra é interpretar muitas de nós que estão aqui de uma maneira obrigada, que foram expulsas, que foram estudar, trabalhar”, afirma Gleycielli. “Mas ser indígena é carregar o território no corpo, na veia. Nós seremos o que quisermos ser em qualquer lugar. E dentro do contexto urbano, isso não nos faz menos indígenas”.
A atriz e roteirista tece, com lucidez e lirismo, um relato que atravessa seu próprio corpo: o da indígena Guató que cresceu longe da aldeia, mas próxima da herança que a define. “O nosso sangue é Guató. Nossa alma é Guató. Mesmo que estejamos afastados do Pantanal, somos o Pantanal”. Em sua fala, emerge o espírito de Mapago: o de honrar a memória de quem veio antes — como Dona Neguinha, última cantora conhecida da língua Guató, homenageada no filme — e de reivindicar os corpos presentes como território vivo.
Serena MC, atriz e cantora, incorpora na obra sua própria trajetória. “Fui convidada pela Gleycielli justamente por enxergar nela o que vejo em mim: uma identidade étnica periférica, forte e resiliente. O filme é importante porque nosso povo sofreu e ainda sofre apagamentos profundos. Mostrar isso com beleza e força é necessário”, diz.
Criada na periferia de Campo Grande, Serena leva para o filme a potência de uma arte que nasce entre a ancestralidade e o concreto. “A maioria das pessoas da comunidade são pretas e originárias. A favela é o quilombo e a aldeia dos tempos de agora. E eu uso a poesia, o rap, o funk e a moda como forma de enaltecer isso. De dizer que estamos vivos”.
A atriz também reflete sobre a importância simbólica da obra. “Nosso povo foi declarado extinto. Mas existimos. Existimos em todas as partes. Criar uma obra como Mapago é dizer isso ao Brasil e ao mundo. Que estamos aqui, com nossas dores, com nossa arte, com nossa história”.
O diretor Marcus Teles traz para o filme uma escuta profunda, forjada por mais de 14 anos de estudos e vivências com os direitos dos povos originários. Com formação em Relações Internacionais (UFGD), Produção Audiovisual (FAAP) e Mestrado em Cinema pelo Instituto Politécnico do Porto (Portugal), Teles acredita que a forma de filmar precisa refletir a própria alma da história.
“A ancestralidade não entra só como tema, mas como linguagem. Ela está no tempo da oralidade, no silêncio entre as palavras, nos gestos. O funk e o hip hop não aparecem como contraponto, mas como continuidade da força criativa dos corpos periféricos e originários. O filme busca esses encontros — e também os atritos — porque é nesses atritos que a identidade se afirma”.
A câmera, explica o diretor, funciona como ouvinte. Os planos longos, a luz natural, os detalhes íntimos e uma montagem respeitosa ajudam a revelar, pouco a pouco, as camadas da experiência indígena urbana. “Gleycielli e Serena não interpretam papéis. Elas vivem. E é por isso que minha direção de atores está sendo baseada na confiança e no improviso. Muitas cenas surgem no momento, de forma espontânea. O roteiro é a estrutura, mas a verdade vem delas”.
Mapago é, antes de tudo, uma afirmação de existência. Não importa se o povo Guató foi dado como extinto. O filme responde: estamos aqui. Estamos dançando nas vielas, escrevendo nas paredes, cantando nos becos, sonhando no cinema.
“Quero que esse filme fale com os indígenas e também com os não indígenas”, diz Gleycielli. “Quero que entendam que o afastamento do território adoece, mas também fortalece. E que mesmo em dor, há força. Muita força. Que essa seja a marca de Mapago”.
O curta é também uma carta de amor às mulheres Guató. “Elas são as protagonistas, são as portadoras do canto e da luta”, afirma Marcus Teles. “É o realismo fantástico latino-americano na sua forma mais bruta — e mais verdadeira. Um cinema que olha para dentro da terra, mas também para o céu”.
As filmagens de Mapago seguem ao longo de agosto, com previsão de estreia para o próximo ano. Este projeto conta com incentivo da PNAB (Programa Nacional Aldir Blanc), do Ministério da Cultura, por meio de edital da FCMS (Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul).
Equipe técnica do filme
Marcus Teles – Diretor e roteirista
Gleycielli Nonato Guató – Atriz, roteirista e Produtora executiva
Jefley M. Cano – Produtor
Daniel Felipe – Produtor
Fernando Cruz – Ator
Serena MC – Atriz
Suzie Guarani – Atriz
Lua Mendes – Atriz
Persefone – Atriz
Thay Gomes – Atriz
4real.wav – técnico de som direto
Luan Iturve – assistente de som
Fabricio Borges – Diretor de fotografia
Tatiana Varela – Operadora de câmera
Rafael Viriato – Assistente de direção
Lucas Moura – Assistente de produção
Sophia Goulart – Assistente de produção e Foto Still
Fernanda Galindo – Assistente de produção
Lucas Arruda e Aline Lira – Assessoria de imprensa