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Pressões ambientais externas reacendem disputa sobre limites de autorregulação no agronegócio

Foto: Freepik

Da Redação

Advogada especialista em Direito Agrário alerta que acordos privados, como a Moratória da Soja, podem impor critérios além da lei e comprometer a segurança jurídica dos produtores

A intensificação das exigências internacionais para que os produtores brasileiros comprovem de forma contínua a inexistência de dano ambiental como condição para exportar commodities, especialmente a soja, reacendeu um debate jurídico sensível no país. Para a advogada especialista em Direito Agrário e do Agronegócio, Márcia de Alcântara, do escritório Celso Cândido de Souza Advogados, parte dessa exigência ultrapassa a pauta de sustentabilidade e pode entrar em choque com princípios constitucionais e da ordem econômica, especialmente quando assume caráter padronizado e coordenado por grandes agentes privados. 

Segundo ela, quando tradings internacionais reunidas em associações que concentram parcela expressiva do mercado firmam pactos com auditorias e monitoramentos adequados, acabam impondo obrigações ambientais adicionais às previsões em lei. “Esses acordos privados transferem ao produtor o ônus de provar continuamente que não causa dano ambiental, invertendo a presunção de legalidade e de boa-fé de quem cumpre o Código Florestal e demais normas”, explica.

Márcia observa que esse tipo de exigência,  quando se torna condição para o acesso ao mercado, tensiona princípios como a segurança jurídica e o devido processo. “Quando a obrigação é padronizada e coordenada por agentes dominantes, deixa de ser mera cláusula contratual e passa a se aproximar de uma restrição coletiva, com efeito de boicote”, afirma.

Moratória da Soja e Científica Setorial

Entre os casos emblemáticos está a chamada Moratória da Soja, que proíbe a compra do grão oriundo de áreas desmatadas após 2008 na Amazônia. Para a advogada, o modelo de funcionamento da moratória se assemelha a uma forma de regulação privada, com possíveis implicações concorrenciais. “Há três pontos críticos nesse conjunto: a cooperação por associações que concentram parcela relevante do mercado; a troca de informações sensíveis e listas de exclusão que não são públicas; e a imposição de padrões mais severos do que a legislação brasileira. Esse conjunto pode configurar conduta anticoncorrencial, conforme o artigo 36 da Lei 12.529/2011”, avaliação. 

Ela acrescenta que cobranças financeiras ou bloqueios comerciais aplicados a produtores que não apresentam documentação adicional de regularidade ambiental podem representar prejuízos privados sem respaldo legal. O tema, segundo Márcia, já vem sendo acompanhado tanto pela autoridade antitruste quanto pelo Judiciário.

Marco jurídico recente

Nos últimos meses, a controvérsia ganhou contornos institucionais. Uma decisão liminar do ministro Flávio Dino, no Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a suspensão de processos judiciais e administrativos ligados à Moratória da Soja até o julgamento de mérito, para evitar decisões contraditórias e permitir uma análise técnica do conflito. Paralelamente, o Cade decidiu aguardar o posicionamento do STF antes de seguir com as investigações, embora mantenha a atenção sobre a troca de informações confidenciais entre empresas durante o período.

Entidades como a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a Aprosoja-MT defendem que a atuação concorrencial do Estado não seja paralisada. Eles argumentaram que há promessas de melhoria na compra e que a suspensão integral das apurações pode esvaziar a tutela concorrencial. 

Entre os principais questionamentos estão a extrapolação normativa de acordos privados, a falta de transparência nos critérios de exclusão e a substituição da regulação pública por padrões privados de alcance global. “Esses arranjos acabam por substituir o papel do Estado, criando regras opacas e devido sem processo ao produtor”, pontua Márcia.

Possíveis capítulos

Um especialista mapeou dois possíveis desfechos para o impasse. Caso o STF decida a favor dos produtores, será reforçada a soberania regulatória do Estado brasileiro, com o reconhecimento de que os critérios ambientais devem ser definidos por normas públicas claras e transparentes. A decisão poderia irradiar efeitos para outras cadeias produtivas — como carne, milho e café —, estabelecendo parâmetros de ESG proporcionais e auditáveis. Em sentido contrário, validar a autorregulação privada abriria espaço para padrões globais com camadas adicionais de exigência, elevando custos de conformidade e facilitando a concorrência.

Para Márcia, o Brasil já conta com um dos arcabouços ambientais mais robustos do mundo. O Código Florestal exige a manutenção de Reserva Legal e Áreas de Preservação Permanente, exige o Cadastro Ambiental Rural georreferenciado e conta com sistemas de monitoramento por satélite e mecanismos de supervisão ambiental. Além disso, o país dispõe de políticas estruturantes como a Política Nacional do Meio Ambiente, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) e a Política Nacional sobre Mudança do Clima. 

“Esse conjunto garante previsibilidade ao produtor regular e comprova que o país possui um marco ambiental sólido. Por isso, as exigências externas precisam de normas de proporcionalidade, a transparência e o devido processo. Caso contrário, correm o risco de ferir a legislação brasileira e distorcer a concorrência”, conclui.

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